Alfred Hitchcock é considerado um dos mestres do cinema com particular domínio excepcional das técnicas de montagem. Nesse post, você vai saber detalhes de um de seus filmes de longa-metragem mais comentados e curiosos exatamente por não conter cortes, ou melhor, quase isso.

Trata-se do filme “Festim Diabólico” (Rope), baseado em uma peça teatral, e que foi o primeiro filme colorido do diretor.

Tendo sido estrelado por James Stewart, ator recorrente em películas de Hitchcock, conta a história de dois estudantes que assassinam um colega de classe momentos antes de uma festinha em sua casa, para a qual convidam justamente os pais do garoto assassinado, sua ex-noiva e um de seus professores (Stewart). A dupla é movida pelo motivo torpe de se auto-vangloriar por cometer um crime perfeito, que nem mesmo seu esperto professor seria capaz de descobrir. No entanto, não é isso que acontece, e eles acabam se dando mal ao final da trama.

Um detalhe interessante da peça chamou a atenção de Hitchcock: ela se passa num tempo corrido, das 19:30 às 21:15, ou seja o tempo dramático coincide com o tempo de duração da peça. E foi esse detalhe que fez com que o diretor resolvesse trabalhar de um jeito inédito na história do cinema até então. Entenda melhor, nas palavras do próprio Hitchcock:

“A peça transcorria no mesmo tempo que a ação, era contínua, do levantar da cortina até a cortina baixada, e eu me perguntei: Como posso tecnicamente filmar isso em um andamento similar? A resposta era, evidentemente, que a técnica do filme seria igualmente contínua e que não se faria nenhuma interrupção no interior de uma história que começa às 19:30 e termina às 21:15. Então concebi essa idéia um pouco louca de rodar um filme que sec onstituiria em um único plano.”

 

Hitchcock era obcecado com a montagem, tinha total consciência do seu poder narrativo. Quando começou a filmar nos EUA, imperava o modelo do produtor todo-poderoso, e o diretor do filme não tinha voz e não interferia na montagem.

Para driblar o “sistema” de Hollywood, reza a lenda, Hitchcock passou a cortar o filme na camera, durante a filmagem. Ou seja, os planos de cada cena registravam momentos diferentes que se encadeavam no tempo, de modo que o montador não tinha outra alternativa senão editar o filme do jeito que Hitchcock imaginara.

Com Festim Diabólico, o montador, coitado, só pode editar não mais que dez planos. Mais controle, impossível. Acompanhe novamente as palavras de Hitchcock:

“Agora, quando penso nisso, dou-me conta de que (a idéia) era completamente idiota, porque eu rompia com todas as minhas tradições e renegava minhas teorias sobre a fragmentação do filme e das possibilidades da montagem para contar visualmente uma história. Entretanto, rodei esse filme da maneira pela qual estava previamente montado; os movimentos da camera e os movimentos dos atores reconstituíam extamente a minha maneira habitual de “decupar”, isto é, eu mantinha o princípio da mudança de proporções das imagens em relação à importância emocional dos momentos dados. Bem entendido, tive muitas dificuldades para fazer isso, e não apenas com a câmera.

Por exemplo, com a luz: havia no filme um escoamento contínuo de luz com as mudanças de iluminação das 19:30 até às 21:15, já que se começava a ação à luz do dia e a terminávamos com a noite caída. Uma outra dificuldade técnica a superar era a interrupção forçada ao final de cada rolo, que eu a resolvi fazendo passar um personagem diante da objetiva para escurecer nesse momento. Encontrávamos-nos, então, em plano de detalhe sobre o paletó de um personagem e , no começo do rolo seguinte, nós a retomávamos igualmente em plano de detalhe sobre o seu paletó.”

No fundo, nessa experiência, Hitchcock levou ao extremo a própria idéia de montagem invisível da narrativa clássica do cinema. Com o truque criado pelo diretor, a montagem se dá através do movimento da câmera e dos atores dentro do quadro, variando o angulo e enquadramento o tempo todo num grande plano-sequência.

Claro que para o efeito funcionar era preciso maestria sobretudo na operação da câmera. É Hitchcock quem explica como funcionava:

“A técnica da câmera móvel tinha sido ensaiada antes nos seus menores detalhes. Trabalhava-se com dolly e no chão, havia pequenas marcas, números muito discretos escritos no solo e todo o trabalho do câmera com o dollyy era chegar sobre tal número em tal frase do diálogo, depois a tal outro número, e assim por diante. Quando passávamos de um cômodo a outro, a parede da sala ou da entrada sumiam sobre trilhos silenciosos; os móveis também, montados sobre rodinhas, eram empurrados pouco a pouco. Era realmente um espetáculo assistir uma tomada desse filme!”

Essa experiência do diretor inglês ficou marcada na história do cinema. Na realidade, trata-se de um filme bastante teatral, amarrado no tempo real da interpretação dos atores.

A seguir, você vai poder acompanhar um vídeo editado pelo site vashivisuals.com, revelando o aspecto mais curioso da experiencia de Hitchcock nesse fime: os cortes “invisíveis” de “Festim Diabólico”, cujo número exato é discutido até hoje.

Obs.: Os trechos com o depoimento de Hitchcock foram extraídos do livro “Truffaut entrevista Hitchcock”, Brasiliense – 1986

(post publicado originalmente no blog VideoGuru em 18 de outubro de 2013)

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